quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Boate Kiss: A tragédia de Santa Maria

Foi um show de horror! Pessoas caídas ao chão enquanto outras tentavam socorrê-las. Algumas entrando e saíndo da boate em meio à fumaça escura, carregando corpos e aspirando fumaça tóxica. Alguns personagens entraram e não mais saíram. 
Assim a cidade de Santa Maria foi apresentada ao Brasil. Foi desta forma a tragédia ocorrida na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, foi descrita de forma exaustiva por toda a mídia nos últimos dias. Um dos maiores incêndios da história do Brasil. Por volta das 2h30 daquela manhã de domingo, 231 pessoas morreram no local ou logo após o incidente, vítimas de asfixia, pisoteio e queimaduras resultantes da combustão de material combustível no interior da Boate Kiss na cidade de Santa Maria - RS. Confesso que estava evitando escrever sobre tal evento dramático tão debatido, discutido e remexido, pois, seria mais um a expor aos atores e espectadores, atos e conseqüências de tão absurda tragédia de forma leviana e superficial. Todavia, passaram-se alguns dias do incidente e o cenário não mudou no aspecto administrativo, político e criminal, mas mudou em números, pois, assistimos mais oito famílias chorarem seus entes queridos que não se recuperaram após intervenção médico-hospitalar. Aí bate a indignação completa!
O número atualizado e de 239 vítimas fatais e mais de 80 pessoas ainda internadas (antes eram 140) acometidas por mal originado pelo incêndio.
Não é brincadeira, é coisa séria! Seríssima! São 239 vítimas fatais, o quê é muito difícil dimensionar, portanto, para termos “certa” noção do quanto absurdo é esse número, se faz necessário lançar mão de uma comparação não menos trágica que também demonstra o nível de desenvolvimento social que encontramos no Brasil, país de leis feitas para serem burladas, ignoradas e dolosamente não cumpridas.
Para isso nos remetemos a 29 de setembro de 2006, quando o vôo 1907 da Gol Linhas Aéreas, após colisão com um jatinho em pleno ar, caiu, matando 154 pessoas. É, a tragédia de Santa Maria corresponda à queda de quase duas aeronaves do tipo Boeing 737-800. Grande comoção também ocorreu na ocasião do Massacre de Realengo em 07 de abril de 2011, quando um homem assassinou 12 crianças no interior da Escola Municipal Tasso da Silveira na cidade do Rio de Janeiro.
Por isso repito. Desta vez foram 239 vítimas fatais, até o presente momento! Não! O mais importante não é a dimensão da tragédia, mas a perplexidade da sociedade com tal número, ignorando ou lamentando por não ter sido menos vítimas naquele forno humano. Esquecem que se fosse apenas uma vítima fatal já seria um absurdo sem tamanho, quanto mais, 239 pessoas mortas em um ambiente de diversão, lazer, descontração e alegria (inconcebível o absurdo). Não há desculpa ou explicação que atenue ou justifique a ocorrência de evento semelhante. O principal trabalho que deve ser feito para se evitar eventos desta magnitude é o trabalho preventivo, mas como todos sabem o sinistro já ocorreu. Agora só resta apurar as causas e conseqüência, identificar, dimensionar e individualizar responsabilidades e por fim, aprender com a tragédia, criando mecanismos de tal forma que algo semelhante não ocorra nunca mais.
Ademais, iniciamos a análise partindo de constatações técnicas e a partir disso, alguns apontamentos: segundo especialistas, para que ocorram tragédias desta magnitude é necessário não apenas a ocorrência de um fator, mas uma série de equívocos e procedimentos não condizentes com o previsto em leis ou regulamentos. Foi o que ocorreu na casa noturna. O desenho do desastre foi delineado pelo fogo, mas foi preenchido por diversos fatores que remetem a inúmeros autores e contextos.
Absurdos foram cometidos de forma a impressionar até mesmo a incapacidade preventiva de uma criança de 10 anos de idade, pois, até mesmo seres de menos idade sabem que fogo em contato com espuma, papel, madeira, pano ou plástico, queima e produz mais fogo e fumaça. Parece que todos sabiam disso, a exceção dos componentes da Banda Gurizada Fandangueira, pois, o vocalista acionou o artefato pirotécnico em ambiente fechado, direcionando as faíscas ao isolamento acústico constituído de espuma inadequada ou contra-indiciada para tal finalidade.
Aos seguranças e demais funcionários da casa noturna faltaram instrução, treinamento e preparo técnico voltado ao controle de crise (pânico do público) e combate primário ao incêndio. Faltou também, comunicação dos empregados com freqüentadores de forma a informar adequadamente o que estava acontecendo e qual seria a conduta mais adequada a ser adotada pelo público de forma a evacuar o local sem causar pânico ou resultar em lesões corporais derivadas de empurrões, quedas, pisoteio, esmagamento e asfixia. A estes empregados em concorrência com os proprietários do estabelecimento, faltou adoção de sistema de comunicação eficiente que cientificasse todos os encarregados da segurança quanto à ocorrência de incêndio no interior da boate, o que por sua vez, evitaria a suposta barração do público com intuito de que estes pagassem a conta antes de saírem do estabelecimento.
Também há a suspeita de que a boate estaria superlotada (operando com número de freqüentadores acima de sua capacidade), o que se comprovará com laudos e estudos que serão apresentados posteriormente.
Aos donos da Boate Kiss faltou o bom senso existente em qualquer ser que goze de suas faculdades mentais e não esteja entorpecido pelo extremo capitalismo (ganhar cada vez mais, gastar quanto menos e reduzir custos, apesar do grande investimento na estética do estabelecimento).
A Boate Kiss, assim como inúmeros estabelecimentos similares, reunia características próprias de ambiente propício, não só a ocorrência de tragédias, mas a amplificação dos catastróficos resultados. Ambiente escuro, não contemplado com saídas de emergência, ou qualquer outra saída compatível com o número de freqüentadores do estabelecimento; inexistência de luzes de emergência, placas de sinalização de saída; equipamentos de combate a incêndio inexistentes (sprinkler e mangueiras) ou inoperantes (extintores); inexistência de pessoal treinado para atuação em situação de crise e pânico; inexistência de exautores ou janelas capazes de canalizar a fumaça ao ambiente externo; existência de degraus, móveis (mesas, cadeiras e etc), grades, tapumes, barras de contenção, cavaletes que dificultaram o trânsito interno e a evacuação das pessoas. No entanto, nada vitimou mais do que a fumaça tóxica resultante da combustão do material componente da estrutura de isolamento acústico (espuma), que mais tarde, comprovou-se ser inadequado para tal finalidade.
Aos freqüentadores faltou o bom senso de analisar se o ambiente era seguro ou não, talvez induzidos pela sensação de segurança direcionada pelo dever estatal de zelar pela vida da população com adoção de medidas preventivas e permanente promoção da fiscalização, o que aos olhos de todo o mundo, foi falho ou omisso.
O certo é que paira na mente de todos nós a inexplicável incompetência técnico-administrativa de uma instituição como o Corpo de Bombeiros do Estado do Rio Grande do Sul que representado por sua unidade em Santa Maria e por seus componentes que pecaram antes, durante e depois da tragédia.
Como vistoriaram, aprovaram (na ocasião da expedição do alvará anterior) e autorizaram o funcionamento de um estabelecimento com tantas falhas e contra-indicações técnicas? Como se omitiram na fiscalização frente ao cumprimento das orientações e determinações constantes em laudos de vistoria? Qual a explicação para tamanha demora na execução de nova vistoria que subsidiária a liberação ou não do alvará para o funcionamento do estabelecimento? Restaram-nos apenas tais perguntas retóricas, pois, em uma tragédia que vitima 239 pessoas, não sobrou ninguém para respondê-las neste momento. Não questionamos o tempo de atendimento da chamada, mas a forma desorientada que se deu a tentativa de salvamento de vítimas, onde não se isolou o local e ainda permitiu-se a reentrada de civis na boate, que em tentativa desesperada para salvar outras pessoas, inalaram fumaça tóxica, o que agravou o estado de saúde destes inúmeros heróis anônimos que posteriormente morreram ou foram hospitalizados. Marcante foi a imagem de cidadãos comuns que em ato desesperado, tentavam romper as grossas paredes da boate Kiss.
Não ignoramos os atos heróicos dos bravos militares do Corpo de Bombeiros Militar que se arriscaram frente ao perigo, mas ficou evidente o desespero motivado pelo misto emocional. 
Diante tudo isso fica evidente a omissão do poder público em geral e de todos os outros integrantes daquela sociedade: a Prefeitura (a atual e a anterior) que não procedeu de forma a fiscalizar e vistoriar a edificação, limitando-se a burocratizar o processo de regularização de estabelecimentos comerciais, o que inevitavelmente abre brecha a servidores inescrupulosos extorquirem dinheiro de empresários, alimentando a máquina corruptiva e expondo o cidadão ao perigo; a Defesa Civil que juntamente com o Corpo de Bombeiros Militar detinha a obrigação preventiva frente aos mecanismos de combate a incêndio e vistoria da estrutura predial; os sindicatos dos trabalhadores que ali labutavam, que não exerceram suas obrigações institucionais de forma a fiscalizar o ambiente de trabalho; o Conselho de Segurança Local que não atentou a observar a vulnerabilidade do estabelecimento e a falta de estrutura urbana (ruas largas, hidrantes, etc) capaz de prover casa comercial de tão elevado fluxo de pessoas; o Poder Judiciário, em especial, a Vara da Infância e Juventude, que em algum momento se omitiu na fiscalização quanto a proibição de entrada de menores na casa noturna; a toda a sociedade de Santa Maria que manteve-se calada diante da omissão do poder público. Todos sabiam e todos conheciam a Boate Kiss, mas ninguém ousou ir de encontro ao senso comum.
Qualquer pessoa de bom senso que entrasse naquele ambiente com um único objetivo analítico voltado a segurança e isento de qualquer pressão empresarial, política ou apelo pessoal (amizade, diversão, emprego, comércio), constataria a inadequação do ambiente frente as normas técnicas em seu sentido finalístico (preservar vidas) e não em seu sentido literal, frio ou tendencioso.
E agora Maria? E agora Santa Maria? Involuntariamente tornou-se o triste retrato do Brasil, país que muito tem a amadurecer e civilizar, agora sem 239 jovens, homens e mulheres, filhos e pais, tios e sobrinhos, netos e amigos, que não mais gozaram as maravilhas de toda uma vida de realizações, pois tiveram ceifados seus sonhos em pleno vigor de suas juventudes.
O saldo final da hipócrita espada da justiça foi a prisão de 4 pessoas, contudo, à nenhuma autoridade pública fora atribuída responsabilidade solidária. Essa é Santa Maria, esse é o Rio Grande do Sul, esse é o Brasil, tudo isso somos nós.
Agora é chorar!
Texto: OBSERVADOR

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